Em primeiro lugar, a revolta da cachaça envolve diversas variáveis que não apenas o direito de produzir cachaça por parte dos insubordináveis às diretrizes do pacto entre a coroa portuguesa e a companhia de comércio. Vamos tentar, através desse breve artigo, resumo de alguns textos que serão citados no fim deste escrito; mostrar o contexto mundial, Ibérico e nacional que culminou no movimento que ficou conhecido como a revolta da cachaça.

Antes do período da revolta, o cenário mundial era conturbado, entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade do Século XVII, tudo isso por causa que a Holanda setentrional entrou em ofensiva contra a Espanha em busca de sua independência, evento que ficou conhecido como a revolta dos 80 anos, que durou de 1568 a 1648. Este conflito afetou diretamente os territórios Europeus Ultramarinos. Do Brasil até Malaca, no sudeste asiático, as disputas entre territórios estratégicos para o comércio se exacerbaram.

A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) tornou ainda mais grave esse cenário. Segundo alguns historiadores esse foi o primeiro grande conflito Europeu do mundo moderno, e envolveu uma disputa entre católicos e protestantes na luta pela hegemonia de seus Estados, reforçou o confronto entre a Espanha católica e a Holanda setentrional protestante.

O Estado português se envolveu diretamente nesse conflito quando da união Ibérica, que Durou de 1580 a 1640. Portugal sofreu com os ataques da marinha holandesa e inglesa. Sendo o Estado mais fraco entre os envolvidos no conflito, Portugal teve consideráveis perdas de frota, especiarias e territórios. A superioridade Holandesa era enorme.

Nesse contexto de superioridade bélica e comercial que se deu as realizações ultramarinas holandesas até a primeira metade do século XVII. Neste período, tivemos: duas invasões ao Brasil; a conquista da Guiana, Curaçao e de alguns pontos da América do Norte. Na África, estabeleceram-se na colônia do Cabo e, temporariamente, em Angola, Benguela, São Tomé e Príncipe, entre outras regiões.

Enormes prejuízos assolaram os portugueses nesse contexto das quatro primeiras décadas do século XVII e geraram uma profunda insatisfação dos portugueses com o Estado espanhol, sendo essa a principal causa da insurreição promovida por Portugal que se tornou independente, agora sob a dinastia Bragança, representada por D. João IV, tendo fim, portanto, a União Ibérica.

Infelizmente, e ainda por causa desse terrível estado de coisas, a independência de Portugal à Espanha tornaram as coisas mais difíceis na terrinha, agora Portugal tinha de combater em duas frentes, contra a Espanha por terra e contra os holandeses em seus territórios de além-mar

A dificuldade da metrópole portuguesa em furar o bloqueio atlântico imposto pelos holandeses, a necessidade de reorganização interna e a preocupação com as guerras na Europa retardavam a restauração do controle português de seu Império Ultramarino. Nesse contexto houve um período de relativa autonomia das colônias de Portugal que se iniciara no fim do século XVI, quando ainda estavam submetidas ao rei de Espanha ´Foi o caso do Rio de Janeiro, onde culminou a revolta da cachaça.

Durante a União Ibérica, o Rio de Janeiro aumentou a sua importância no Atlântico Sul. Com grande parte de sua economia baseada no contrabando de produtos, em um comércio triangular que incluía Luanda e Buenos Aires (situada na desembocadura do Rio da Prata), a cidade iniciou o século XVII sendo a principal cidade lusitana ao Sul de Salvador, sede do Governo-Geral do Brasil.

Desse estado de coisas se torna importante tocar em outra personagem dessa história e da relação de Portugal com a colônia e o Rio de Janeiro que é a fundação da companhia de comércio.

A companhia do comércio criada em 1649 teria a função de obter um maior controle sobre o comércio do Brasil. O objetivo da companhia era de enviar frotas regulares do Brasil para Portugal e vice-versa, escoltando toda a exportação colonial com navios de guerra. Em troca, a coroa garantiria à Companhia “o estanque (monopólio) para o Brasil de quatro gêneros de mantimentos, a saber, vinhos, farinhas, azeites e bacalhau (…)”. A coroa também fixa preços aos quais a companhia pagaria pelos produtos, sendo eles “(…) todos mais acomodados, do que hoje estão valendo”.

Através da Armada da Companhia Geral do Comércio a coroa dava mais segurança a comerciantes e produtores sobre o traslado, dos produtos a serem comercializados, da investida de piratas e outros.

Através da Companhia do comércio a rédea da sanha arrecadatória portuguesa se apertava, impedindo descaminhos da parte que cabia à metrópole e intentando a diminuição do contrabando, visto que Portugal se encontrava em severa crise.

Não menos Importante do que a relação da companhia do comércio com a colônia foi que a Restauração Portuguesa (1640) – fim da União Ibérica – abriu um novo panorama ao Rio de Janeiro. A aclamação D. João IV como novo rei de Portugal foi muito bem recebida por parte da Câmara, que se colocou sob suas ordens, o que levou à cidade do Rio de Janeiro o título de mui leal e heroica. Esse título ampliou os poderes da Câmara como, por exemplo, o direito de escolher o governador substituto em caso de morte do titular em exercício. Além da permissão do uso de títulos de nobreza e limitação do poder do governador.

A partir de então, o aumento do poder da Câmara vai chocando-se gradativamente com o poder da oligarquia dos Sá – sobre o qual falaremos mais adiante – e de seus aliados que veio culminar na Revolta do Rio de Janeiro (1660), apelidada de Revolta da Cachaça ou Revolta dos Jeribiteiros, supostamente iniciada pelos produtores de jeribita (cachaça).

Outros fatores contribuíram para um clima no mínimo tenso entre os produtores coloniais e a companhia de comércio e a coroa portuguesa foram:

Na segunda metade do século XVII, os mercados europeus apresentam forte queda no consumo do açúcar brasileiro, que agora enfrenta a concorrência das Antilhas.

O preço do tabaco desaba perante a concorrência nos EUA.

Produtos tropicais de luxo passaram a ser dispensáveis no quadro de guerras da Europa.

O pau- -brasil, cuja tinta de cor vermelha-brasa era amplamente utilizada para tingir tecidos e dar um novo colorido às vestes europeias, acompanha a tendência de baixa.

Nesse contexto a cachaça surge como uma produção alternativa, daí a sua importância na medida em que a aguardente brasileira era muito consumida em práticas rituais africanas e era mais apreciada do que a aguardente de uva portuguesa.

Sendo mais apreciada do que a aguardente de uva portuguesa, os produtores e exportadores metropolitanos perdiam o mercado africano para os brasileiros. Assim, com o objetivo de proteger os produtores metropolitanos na África e de ampliar a exportação de vinho para a América portuguesa, D. João IV determina em 1649 a proibição da produção e consumo de vinho de mel (a garapa fermentada), aguardente e cachaça em todo o Estado do Brasil.

Além de defender os seus próprios interesses, o rei também acata a decisão dos deputados da Companhia Geral de Comércio que garantiria o monopólio no fornecimento de vinho para o Brasil. A proibição da fabricação da cachaça e as restrições à navegação comercial ultramarina, que a partir de 1649 só poderia ser feita sob o aval da Companhia Geral de Comércio, exaltaram os ânimos dos colonos fluminenses, que reagiram à decisão Real através de seu Governador Luís de Almeida Portugal (1652-57).

Luís de Almeida enviou um memorial ao Conselho Ultramarino alegando que a proibição da produção e comercialização da aguardente causaria grandes danos à economia fluminense. Como consequência, muitos engenhos seriam extintos e, por isso, iria suspender a ordem régia na cidade. Sempre buscando não desacatar o rei, o governador do Rio de Janeiro argumenta que a proibição poderia ser mantida na Bahia, onde o açúcar tinha maior qualidade e melhor preço, não sendo essencial à produção da bebida derivada da cana, já no Rio de Janeiro era fundamental a cachaça, pois o seu açúcar não tinha boa qualidade

A Câmara ainda pede autorização para a saída de navios que não pertencessem à frota desta Companhia. A situação de rebeldia do Rio de Janeiro em relação à cachaça feria brutalmente os interesses da Companhia Geral de Comércio na região. A atitude tomada foi a nomeação de Thomé Correia Alvarenga como novo governador da capitania.

Não menos importante, em meio a toda essa problemática são os interesses da família Correia de Sá e que estavam intimamente ligados ao da Companhia Geral de Comércio. Esta tinha como um de seus associados Salvador Benevides e como sargento-mor da Armada da Companhia, seu sobrinho, Martim Correia Vasques. Desse modo, uma das primeiras medidas adotadas por Thomé Correia Alvarenga foi a execução da ordem régia que proibia a fabricação da aguardente.

Para complementar essa medida, o Reino, sob a alegação de que a cachaça gerava a rebeldia dos negros, em 1659 mandou que todos os alambiques da capitania fossem trazidos à Câmara da cidade “para ali se quebrar e desmanchar”. Sem a produção da cachaça, os colonos do Rio de Janeiro estariam arruinados, na medida em que não poderiam efetuar a troca por escravos, fundamentais para a produção da região e para a troca por prata junto aos espanhóis.

A autonomia do Rio de Janeiro estava seriamente comprometida pela atuação da Companhia Geral de Comércio, que proibia a execução da principal atividade produtiva da cidade, controlava a saída e chegada de navios ao porto fluminense através de sua Armada e tinha o monopólio de diversos produtos. Restaria aos colonos entregar a sua produção de açúcar a um preço muito baixo. Com exceção de Salvador Benevides, que em 1653 adquire junto a Lisboa o privilégio de ter junto aos navios que carregassem no Rio de Janeiro 10% do espaço de carga destinado ao seu açúcar, cujo frete era o mesmo que pagavam os ministros da coroa, ou seja, muito mais baixos do que os preços que pagavam os colonos.

O golpe econômico tinha sido desferido, contudo ainda restava o golpe político. Com a morte de D. João IV, em 1656, foi incrementado o poder do bando de Salvador Benevides no Rio de Janeiro. Talvez por estar desconfiado da lealdade de Salvador pelas suas ligações familiares com espanhóis e pelas inúmeras denúncias de corrupção e abuso de poder feitas contra ele, o rei, desde 1648, procurou manter distante Salvador e familiares do governo do Rio de Janeiro. Em 1657, como imediato reflexo da morte de D. João IV, foi nomeado Thomé Correia Alvarenga para o cargo, o que provavelmente foi obtido por Salvador Benevides, que se encontrava em Lisboa.

É importante salientar nessa nossa propedêutica à revolta da cachaça a importância de uma família na história colonial portuguêsa, a família Sá. Grande parte da construção política e econômica do mundo lusoamericano foi feita por essa família. Essa relação foi inaugurada pelo governador Martin Afonso de Souza, no início da política colonial portuguesa, no século XVII. A partir de então, esta família se espalhou pelo território brasileiro em distintos cargos políticos e se tornou um dos principais conquistadores deste espaço. Estiveram presentes nas expedições lusitanas conhecidas como: “guarda-costas”, também com a expulsão dos francêses do Rio de janeiro, dos holandeses em Angola, e a fundação da cidade do rio de Janeiro foi empreendimento desta Família.

O mais importante deles e que nos interessa mais nessa breve história da revolta da cachaça é a figura de Salvador Correia de Sá e Benevides, seus antecessores construíram um Império no Rio de Janeiro e transformaram essa cidade em um reduto dos Sá tendo, diminuído seu prestígio após os acontecimentos que damos o nome de Revolta da Cachaça. Tanto que grande parte dos pensadores sobre a Revolta da Cachaça, diante da longevidade desta família no controle daquela capitania, construiu a imagem de movimento atrelado à história dos Sá no Rio de Janeiro.

Salvador Correia de Sá e Benevides foi um militar e político portugês que durante a Guerra da Restauração esteve a serviço do reino de Portugal. Em 1647 comandou a frota que reconquistou Angola e São Tomé e Príncipe da dominação holandesa. Foi por três vezes governador da capitania do Rio de Janeiro(1637-1642, 1648 e 1659-1660); governador da capitania do Sul do Brasil (1659-1662); governador de Angola (1648-1651) e Almirante da Costa Sul e Rio da Prata com superintendência em todas as matérias de Guerra; administrador de todas as Minas do Brasil e Conselheiro dos Conselhos de Guerra e Ultramarino.

O leitor deve ter notado que não indicamos sua data de nascimento e morte, pois há certa controvérsia sobre essas datas e locais onde possivelmente tenha nascido. Brasileiros e angolanos são uníssonos em afirmar que o Governador nasceu no Rio de Janeiro em 1594, lusitanos afirmam que nasceu em Cádis em 1602.

Filho de mãe espanhola, María de Mendonza y Benevides, seu pai, Martim Correia de Sá da família dos fundadores do Rio de Janeiro, Mem de Sá e Estácio de Sá. Estudou no Colégio dos Jesuítas do Morro do Castelo, fundado quando Mem de Sá e Estácio de Sá Expulsaram os franceses do Rio de Janeiro. Viveu provavelmente na fazenda do Engenho da Tijuca, que pertencia à sua família.

Filho e neto de governadores do Rio de Janeiro e ele próprio governador da cidade em oportunidades anteriores, mantinha aliados na Câmara e na administração portuguesa, como é o caso de seu primo Pero de Sousa, que era o Provedor da Fazenda da cidade, principal cargo da burocracia portuguesa no ultramar, responsável por fiscalizar o recolhimento de impostos para a coroa e de prover a cidade de suas demandas.

O nosso personagem levava consigo o prestígio de ser grande defensor da cidade contra o inimigo estrangeiro, evitando o ataque do Capitão holandês Piet Heyn ao Rio de Janeiro, ainda nas costas do Espírito Santo, além de se demonstrar fiel ao Império português, sendo membro do Conselho Ultramarino luso e reconquistador de Angola aos flamengos, liderando a expedição militar a Angola em 1648.

Sua influência e prestígio com a coroa portuguesa era tamanha que aqueles que não estivessem sob sua proteção estariam fadados à ruína. As rotas comerciais atlânticas estavam sob o comando da Companhia de Comércio da qual era sócio. Com o botim da expedição de Angola, ele se tornara o principal traficante de negros da região ao Sul da cidade de Salvador.

Os caminhos do interior em direção às minas estavam sob sua administração. Era dono da maior parte das terras cultivadas da Capitania do Rio de Janeiro e tinha como maior aliado o segundo maior latifundiário: a Companhia de Jesus, que também tinha o controle das aldeias indígenas.

Todo o poder ainda não era suficiente para Salvador Benevides. De volta de Lisboa em 1660, assumiu o governo da Capitania do Rio de Janeiro e de todas as outras pertencentes à Repartição do Sul, o que incluía também São Vicente, São Paulo e Espírito Santo. E logo foi tratando de lançar novos impostos aos colonos. Desta vez, os tributos financiariam o aumento das tropas de 350 para 500 homens, além de pagar os soldos atrasados.

O imposto que incidiria sobre as casas da cidade foi rejeitado pelos representantes dos colonos. Organizados, os colonos barganham pedindo em troca do imposto predial uma taxa sobre a pipa da aguardente. Para isso, o governador deveria permitir a fabricação da bebida, até então proibida. Uma outra taxa seria sobre a carne verde e, assim, a cidade angariaria os recursos necessários para o aumento e pagamento da tropa. A proposta foi aceita pelo governador, contudo logo foi rechaçada, seja pela sua incapacidade de arrecadar os fundos necessários para o incremento da tropa, seja pelos interesses da Companhia Geral de Comércio que ele mesmo representava e que estavam sendo violados.

Não satisfeito, o governador lança uma finta sobre a população que seria taxada de acordo com a riqueza. Esta ação provocou profunda insatisfação dos colonos. O tempo da conversa e negociação haviam terminado. Agora o assunto deveria ser resolvido pela força. Os colonos sabiam que não conseguiriam afrontar o poder de Salvador Benevides enquanto ele estivesse na cidade. A conspiração deveria começar enquanto ele estivesse ausente. Não demorou muito para que esse dia chegasse.

Após instituir o novo imposto, Salvador Benevides parte em visita às minas de Paranaguá, para verificar sua capacidade aurífera e evitar os descaminhos que podiam efetuar os paulistas, sempre resistentes à divulgação da localização das minas.

Mal o governador tinha partido, iniciou a rebelião. O local escolhido pelos conspiradores para a reunião foi São Gonçalo, região cuja principal atividade econômica era a produção da cachaça. Por se localizar no interior da capitania (no século XVII), os colonos puderam preparar a rebelião longe dos aliados de Salvador Benevides e, no dia 8 de novembro de 1660, o grupo liderado por Jerônimo Barbalho invadiu a cidade tomando sua Câmara e depondo todos os aliados da família Sá, incluindo o governador interino e o provedor da Fazenda. A revolta apresentou-se aos cidadãos fluminenses como a única reação possível contra o poder opressor. Mesmo que ela também pudesse representar um maior controle metropolitano sobre a cidade dos colonos. A opressão do colonizador seria mais suave do que a submissão a um opressor residente.

Viva a revolução!!!

Revisão: Felipe Jorge de Faria

Para saber mais leia o artigo sobre o qual esse texto é um resumo: http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-content/uploads/2016/10/e03_a2.pdf


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3 comentários

Hilda Vieira Faria de Oliveira · 10/10/2020 às 15:08

Aprendi que a cachaça foi por um período a base econômica…e que era chamada de jeribita….como começou a produção e comercialização… texto perfeito

Tomar cachaça é um ato Politico! - Blog Cachaça Canela-de-ema · 04/11/2022 às 22:00

[…] como o vinho e a bagaceira, a cachaça passou a ter altas taxas de impostos, culminando com a revolta da cachaça no fim do século XVII, e assim ela ganhou um papel de resistência nacionalista na inconfidência mineira do fim do […]

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