Que o Brasil tem uma dívida histórica com o negro é fato incontestável. O primeiro embarque registrado de africanos escravizados ocorreu em 1525 e o último só em 1866. Navios portugueses e brasileiros fizeram mais de 9 mil viagens com africanos escravizados. Os portugueses de inicio dominavam o tráfico escravagista em todo atlântico. 4,8 milhões de africanos foram transportados para o Brasil e vendidos como escravos, ao longo de mais de três séculos. Outros 670 mil morreram no caminho.

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Navio Negreiro, 4,8 milhões de negros chegaram ao Brasil

Tudo começou sete anos antes da descoberta do Brasil com a construção do Castelo de São Jorge da Mina na Costa do Ouro, hoje Gana, uma fortaleza militar de Dom João 2° para proteger as colônia, abaixo foto da lateral e fachada. Inicialmente era local de comércio do ouro, depois o comércio de escravos, hoje um monumento  “aos horrores do tráfico de escravos”. Uma elite africana se beneficiou diretamente do comércio de escravos, mas sem a pressão dos europeus, a escravidão na África teria uma dimensão imensamente menor.

O trabalho escravo no Brasil foi utilizado principalmente no ciclo da cana-de-açúcar, região litorânea, na mineração do ouro em Minas Gerais e por último nas lavouras de café de São Paulo e Minas. A cachaça apareceu antes de 1530 em algum engenho da região litorânea, alguns afirmam que foi em Pernambuco no litoral ou ilha de  Fernando de Noronha, outros afirmam ser no litoral paulista, mas uma coisa é certa, foi o primeiro destilado das américas. 

Segundo o historiador Luís da Câmara Cascudo, no seu livro Prelúdio da Cachaça, a primeira cachaça no Brasil foi destilada por volta de 1532 em São Vicente, estado de São Paulo.

A prática da libação de origem Greco Romana, com uso da cachaça ou aguardente, foi incorporada pelos negros às religiões afro brasileiras, despejar o primeiro gole e em seguida dizer “uma cachaça pro santo”. Alguns autores acreditam que a libação pode ter vindo da África com os negros, mas outros, como o jornalista Edson Borges, afirmam que veio com os Portugueses e jesuítas que trouxeram também São Benedito, santo siciliano, filho de um escravo, vindo a tornar-se o padroeiro da aguardente.

O surgimento da cachaça, portanto, está intimamente ligado com as tradições e costumes dos  portuguesas e negros Africanos. Os portugueses já fabricavam, antes do descobrimento, o vinho e  um destilado denominado genericamente de bagaceira, fabricado até os dias de hoje. Os negros por sua vez, por não terem acesso fácil aos importados, vinho ou bagaceira, tinham que se contentar com a cachaça produzida por eles mesmos nos engenhos onde atuavam, muito rapidamente foi incorporada a sua dieta como um tipo de energético para ajudar no duro trabalhos nos canaviais.

Muito cedo a cachaça se popularizou nas colônias portuguesas de além mar, foi usado até mesmo como forte moeda na troca por escravos na África. Nasceu na senzala e como subproduto dos engenhos de açúcar, mas chegou na casa grande e começou a competir com as bebidas oficiais da coroa. O consumo clandestino, não só reduzia o consumo pelos colonos de bebidas alcoólicas importadas, como também afetava a arrecadação de impostos. A partir da primeira metade do século XVII a cachaça torna se um produto símbolo do nacionalismo Brasileiro em formação.

A coroa chegou a proibir e até controlar a produção e consumo da aguardente na colônia até que aconteceu a Revolta da Cachaça, episódio ocorrido entre novembro de 1660 e abril de 1661 no Rio de Janeiro, motivado pelo aumento de impostos excessivos cobrados aos fabricantes de aguardente. Também é chamada de Revolta do Barbalho ou Bernarda. Jerônimo Barbalho foi o líder e também produtor de cachaça em seu engenho.  

Em 1661 a regente Luísa de Gusmão liberou a produção de aguardente de Cana incrementando o tráfico com Angola e a economia fluminense. O comércio no Rio continuava vedado até que em 1695 a proibição foi revogada de vez e a chamada “aguardente da terra” ou  jeritiba ganhou ainda mais força com a produção superando os 300 mil litros.

O fluminense, escritor, jornalista e dramaturgo Antônio Callado, Niterói 1917 – Rio 1997, depois de perceber que a emancipação do negro é permeada pela história da cachaça, publicou, tendo como homenageado o ator e comediante negro Grande Otelo, a peça de teatro A Revolta da Cachaça, 1958. Ainda sobre a questão do negro, Callado publicou mais três peças, Pedro Mico 1957, Anjo Negro 1948, o Tesouro de Chica da Silva.

A Revolta da Cachaça na dramaturgia de Callado é a própria revolta do personagem central e negro Ambrósio, inspirado em João Angola, negro liberto, que vivia no morro e teve participação ativa nesta Revolta. A peça conta ainda com as personagens Vito e Dadinha sua mulher. A trama gira entorno da promessa de Vito de escrever uma peça na qual Ambrósio teria o protagonismo, o que não aconteceu.

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A atual Praça XV, palco da Revolta da Cachaça

Na peça tudo começa com a visita de Ambrósio ao casal depois de os ter presenteado com um barril de cachaça. Enquanto discutem a peça e suas possíveis versões todos bebem do presente. A discussão vai acalorando e termina em tragédia.

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Teatro negro de Antônio Calado, A Revolta da Cachaça, Pedro Mico, O Tesouro de Chica da Silva e Uma Rede para Iemanjá

A problemática do negro está condensada ai. A peça é complexa, como discussão e barreiras raciais numa sociedade aparentemente sem preconceitos, conforme fragmentos abaixo.

“E o preto-protagonista é criolo mesmo e não preto pintado de branco” (p. 43)

“”Se você continuar assim Vito quem fica sem peça sou eu, porra. Acabo outra vez fazendo o papel de criolo, de ladrão, de bicheiro, ou chofer” (p. 47).

No final, depois de atirar em Vito e colocá-lo dentro do barril de cachaça, Ambrósio foge quando um policial o fere, como já estava doente fica a sugestão que teria morrido do coração. As reações da policia são representativas do preconceito racial, pois ela só pode esperar do negro o papel de assassino.

A emancipação do nosso teatro teve inicio com a estreia, no Rio, de Vestido de Noiva em 1944 de N. Rodrigues. O primeiro grupo de teatro com atores negros não pintado foi o TEN de Abdias de 1944. Na peça Anjo Negro de Nelson, de 1948, o ator principal era um negro, Ismael, que foi feito por um ator pintado, blackface, para contracenar com a atriz loura Maria Della Costa. O teatro em geral, em especial o teatro negro, sofreu muito com a ditadura militar, tendo recuperado lentamente só nos anos oitenta.

A luta pela nossa emancipação passa também pela emancipação de tudo o que de fato nos torna uma nação, como a arte, o negro, o índio, a mulher, a culinária, a cachaça e outros. Temos que praticar a antropofagia sempre, como fez Aleijadinho na arte e arquitetura, criando um barroco único no mundo depois de alimentar do barroco europeu, como fizeram os primeiros colonos e negros ao produzirem nossa genuína cachaça a partir de conhecimentos e influências europeias e africanas.

Mas como toda emancipação implica em lutar contra preconceitos, inclusive o preconceito estrutural, não é difícil perceber que apesar de grandes avanços, ainda está por vir um Brasil de fato soberano e emancipado. Nas comemorações oficiais você tem o vinho e o whisky, preferencialmente os importados, muito provavelmente reminiscências do nosso período colonial. Nada contra os importados, a questão aqui tratada é simplesmente reconhecer nossos valores históricos e se possível fazer deles produtos de exportação que carregam nosso orgulho.

Sim, bebemos cachaça e muita, são mais de 1 bilhão de litros por ano, só perde em volume para a cerveja, nosso problema é não ter a coragem politica de a assumir publicamente e oficialmente, claro que tem evoluído, mas muito ainda precisa ser feito. É até intrigante tentar entender porque nosso precioso destilado, mesmo depois de tanta luta pela sobrevivência e ter uma alta demanda interna, ainda não tem o mesmo status que a Tequila para os Mexicanos, a Vodca para Russos, o Whisky para os escoceses, o Burbom para os americanos e o Saquê para os japoneses.

Texto: Adão de Faria

Edição: Felipe de Faria


Empório Cachaça Canela-de-ema

Loja virtual, e-commerce, da empresa Agronegócios Fazenda Lagoa Seca do Brasil LTDA que comercializa, no atacado e varejo, cachaça artesanal, orgânica e produtos afins. Todos os produtos são devidamente escolhidos com base nos melhores resultados dos testes de qualidade conforme critérios do MAPA.

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